Um encontro entre caligrafia, lettering e type design para retocar o charme de um dos logotipos mais duradouros do Brasil.
Alguns meses atrás, eu chegava na Plau para um estágio no estúdio. A ideia era trazer minha experiência com caligrafia e lettering, enquanto aprendo mais sobre type design e pratico meu design gráfico. Para marcar o início do estágio, o Rodrigo (o Saiani, que você deve conhecer) me propôs um exercício: redesenhar o logotipo da Seiva de Alfazema. Na verdade, mais um desafio do que uma proposta. De cara, duas coisas passaram pela minha cabeça. A primeira foi “bah,que logo interessante, vai ser divertido fazer isso.” E a segunda foi “vai ser de boas, rapidão de resolver”. Agora corta para a Mariana do presente: preciso admitir que não foi exatamente como eu esperava. Sim, foi divertido, mas a parte do“de boas e rapidão” passou bem longe!
Sei que redesenhar logotipos de marcas famosas é algo relativamente comum no mundo do design gráfico, mas confesso que, apesar de trabalhar com letras e design há alguns anos, essa foi a primeira vez que me arrisquei nisso. E não demorou muito para que eu entendesse o porquê de eu ter recebido esse exercício para começo de conversa, e a importância dele para qualquer designer.
Então minha ideia aqui é detalhar um pouco o meu processo e principalmente o que eu aprendi com tudo isso.
Mas antes, um pouco de contexto sempre cai bem:
A Seiva de Alfazema é uma fragrância que foi criada pela Phebo nos anos 1940. Ela fez tanto sucesso no Brasil que praticamente se transformou em um tesouro nacional. Hoje, apesar de não ser mais produzida e comercializada pela Phebo, a fragrância segue no mercado com um leque considerável de opções de marcas diferentes. A parte mais curiosa é que boa parte das embalagens produzidas por essas marcas seguem com alguma variação da ilustração da camponesa com as montanhas no fundo e uma tipografia com letras cursivas e a linha de base em ascendente. Acho que isso só prova a força de um produto e de uma marca com mais de 70 anos de história.
NO DETALHE DO LOGOTIPO
Meu processo começou com um momento de observação e análise do desenho do logotipo original. Fiz uma lista objetiva e detalhada de tudo o que eu considerava como sendo os pontos fortes e quais eram as oportunidades de melhora.
- As letras “A”, “f” e “z”, criam um ritmo muito interessante e super marcante com os traços descendentes mais alongados. Mas os terminais de cada letra não conversam entre si.
- Traço descontínuo.
- Especialmente no “A” e “z”, o contraste não está respeitando a origem caligráfica da letra cursiva feita com pincel. Além disso, existe uma variação exagerada na relação de peso entre as letras.
- Conexões não são fluidas e naturais e são muito diferentes umas das outras, afetando negativamente o ritmo.
- Espaçamento irregular entre letras.
- Inconsistência na altura de x.
- A forma mais pontiaguda e carregada de personalidade do “z” está contrastando demais com as formas mais fluidas e arredondadas das outras letras.
- A forma geral dá a impressão de que o logo foi rotacionado depois de ser desenhado, o que passa a impressão de desequilíbrio.
PRIMEIROS RASCUNHOS: A SOFRÊNCIA
Só depois de fazer essa análise do logotipo é que comecei meus próprios estudos. O que concluí é que eu queria alcançar um desenho mais fluido e natural para as formas e conexões das letras.
Desde que me entendo por gente, sou uma incurável apaixonada por técnicas tradicionais e analógicas, então meu processo criativo sempre começa no papel. E considerando as conclusões que tirei depois de observar o logotipo, recorrer à caligrafia feita com brush pen como pontapé inicial me parecia o caminho mais lógico, para só em seguida seguir com o refinamento em lettering e vetorização.
Foi aí que o caldo engrossou! Vamos lá e eu vou tentar explicar de uma forma resumida (mas nem tanto) o que rolou.
Alguns dias e um punhado de rascunhos depois, consegui chegar em um resultado que me satisfez. Mas o que aconteceu foi que quando eu apresentava meus resultados pro Rodrigo e para o pessoal todo aqui na Plau, o feedback era “tá no caminho, é um bom começo, mas ainda não chegou lá”.
Quem conhece um pouquinho de caligrafia sabe que ela é cheia de regras, certos e errados para tudo que é traço. Eu tentei corrigir e adequar, dentro da caligrafia, tudo o que eu via de inconsistente no logotipo. O que eu demorei para entender foi que, por mais que as formas das letras agora estivessem mais consistentes, com as proporções corretas e harmoniosas, o logotipo perdeu a identidade. Isso acabou me fazendo entender também o motivo pelo qual esse exercício é tão valioso. Aprendi que nem sempre a regrinha fria é a única resposta. Muito papel e pontos de âncora depois, eu consegui perceber que, de alguma forma, eram as “imperfeições” que faziam o logo da Seiva de Alfazema ser o que ele é.
Claro que eu continuo acreditando e defendendo as regras caligráficas, que, inclusive, me trouxeram até aqui. A questão é que quando seguimos as regras de maneira muito literal, podemos acabar esquecendo de outras qualidades das letras, como a personalidade, a expressão, a comunicação. No caso do Alfazema, ainda temos um fator a mais, que é a memória afetiva que esse logotipo carrega há gerações. Não dava para simplesmente ignorar tudo isso.
A SACADA FINAL
Nas minhas primeiras tentativas, eu estava tão apegada em seguir a forma natural da caligrafia com a brush pen que acabei “limpando” o desenho a ponto de roubar dele boa parte do que o fazia ser tão memorável.
A partir do momento que entendi isso, eu pude finalmente dar um passo atrás e recomeçar. Voltei para o lápis e papel, mas dessa vez eu fui direto para o lettering, redesenhando no papel manteiga, em cima do logotipo original. Assim, eu fui aos poucos, camada por camada, refinando o desenho e “dando um tapa” nos pontos que levantei na análise, mantendo as características da origem caligráfica em mente, mas também fazendo vista grossa para uma regrinha ou outra, tentando manter a personalidade do logotipo.
Alguns dias depois da versão final do rascunho, eu tive a certeza de chegar no resultado que estava buscando. A impressão que tive é que, ao mesmo tempo que muita coisa mudou, pouca coisa mudou. Faz sentido? A estrutura – ou o ductus – das letras continuou a mesma, mas foram as pequenas (ou não tão pequenas assim) intervenções que mudaram o jogo. Como as conexões ficaram mais fluidas e as terminações conversando entre si, o logotipo ganhou um ritmo mais suave e natural. Também mantive o acabamento mais arredondado nos cantos, o que quase passa a impressão de mancha de tinta, outra característica marcante do logotipo original.
Eu optei por deixar o lettering feito na mão o mais finalizado possível para só depois partir para a vetorização. Não é fundamental ter um rascunho hiper refinado e finalizado, esse é o tipo de coisa que cada um encontra a forma como se sente mais confortável no seu processo criativo. Por aqui, eu costumo trabalhar meus rascunhos o máximo possível, já que sinto que me adianta muito na hora de vetorizar e posicionar os pontos nos lugares corretos. Além disso, foram tantas idas e vindas no desenho, que ter uma visualização melhor do acabamento ainda na etapa dos rascunhos me ajudaria a me organizar.
A partir daí, só me restava finalizar no Illustrator, testar na embalagem e partir pro abraço depois colocar meu pezinho na tradição da Plau de meter o bedelho no logotipo dos outros!